Clara e eu tínhamos a mesma idade e dávamos aula na mesma escola quando nos conhecemos. Uma escola gigantesca, milhares de alunos. Nos esfalfávamos de uma sala para outra, atrás do minguado salário. Giz, gritaria, aluno pra fora da sala, montanhas de prova pra corrigir.
Assim que cheguei ao colégio tornamo-nos amigas. Parecíamos as únicas sobreviventes naquele mundo de gente à espera da aposentadoria, da pizza do domingo à noite, da morte. A turma da pizzaria, como os chamávamos. Nós duas, ao contrário, aos fins de semana campeávamos pelas estepes solitárias da cidade. “Quinhentas pessoas por metro quadrado e nós sem ninguém”. Mas entre a pizzaria e a ronda solitária, sempre escolhíamos a alternativa B de batom, beijo, boca vazia. Já entre os problemáticos lobos que encontrávamos e os pacatos colegas de serviço, marcávamos a alternativa A de amor, aflição, ansiedade.
Não me lembro quando me percebi apaixonada por Clara, mas a constatação deu-se sem susto. Na minha vida a paixão sempre irrompe de golfada e não costumo impedir-lhe o fluxo. Abro as comportas e deixo encher as cisternas. O difícil é fechar as torneiras depois da inundação. Mas entre a seca e a inundação, a resposta correta é a alternativa C de casos complicadíssimos.
Certa manhã deixei um bilhete na caixa de correspondência de Clara:
“Acho que nossa relação dá o maior pé. Te quero. Assinale a alternativa correta:
a) esqueça essa história.
b) me esqueça.
c) I love you too.
d) deixa rolar, o que tiver que ser será.”
Temi que minha declaração pudesse chocá-la, mas não, ela sorriu ruborizada e foi tomar café. Ao toque do segundo sinal saí correndo e entrei na primeira sala que encontrei aberta. Dei a melhor aula que já se teve notícia no sistema solar: os desertos floriam, as geleiras pegavam fogo, os oceanos estavam de novos cristalinos. A devastação terminara.
Ao final do período, quando fui guardar o avental no armário, vi ali um minúsculo papelucho que rapidamente coloquei dentro da bolsa. Eu o leria em casa, depois da vodca.
Resposta absolutamente certa. No dia seguinte, enviei-lhe a questão número dois:
“Venha jantar comigo esta noite. Tomaremos vinho e morreremos de rir falando da vida alheia. Assinale a alternativa correta:
a) convite aceito, às oito estarei chegando.
b) Hoje não posso, talvez outro dia.
c) Não quero.
d) Deixa rolar, o que tiver que ser será”.
Para minha alegria, a resposta estava certa de novo. No dia seguinte enviei-lhe a terceira.
Assinale a alternativa correta:
a) isto é um sonho e já vai passar.
b) Isto não é um sonho, mas já vai passar.
c) Isto não vai passar.
d) Deixa rolar o que tiver que ser será.
Não erra uma, a danada!
Estávamos na mesa de um bar quando rabisquei a próxima:
“Comprei um cd da Cássia Eller para ouvirmos juntas. Assinale a alternativa correta:
a) excelente idéia, pode pedir a conta.
b) Não posso, tenho de acordar às sete.
c) Detesto a Cássia Eller.
d) Deixa rolar o que tiver que ser será”.
Resposta absolutamente certa. Celebrávamos antecipadamente a colheita que teríamos no equinócio da primavera, quando o eixo da terra estiver enfim rolado até o limite máximo de aproximação com o sol; os frutos seriam saborosíssimos tínhamos certeza. Nunca tive aluna tão aplicada em vinte anos de magistério.
Hoje, depois de tanto tempo, eu lhe passo a questão de número 826 num guardanapo de papel:
“Assinale a alternativa correta:
a) atum.
b) muzzarela.
c) gorgonzola com catupiry.
d) deixa rolar, o que tiver que ser será”.