sábado, 27 de agosto de 2011

Metamorfose

Quando Gregório Souza acordou certa manhã de uma noite mal dormida cheia de sonhos perturbadores, olhou seus pés que emergiam da outra extremidade da coberta curta e viu que tinha se transformado em Franz Kafka. Na verdade, levou algum tempo para descobrir quem era. Começou certificando-se que aqueles pés, decididamente, não eram os dele. Examinou-os com interesse e deduziu que eram pés da Europa Central, possivelmente checos. Mas só quando sua mãe entrou no quarto e ele respondeu ao seu “bom-dia!” em checo, espantando-se tanto quanto a ela, deu-se conta de quem era.
Não sabia explicar como acontecera aquilo. Não só ele era Kafka como toda a situação era puro Kafka. Sua mãe gritando, perguntando quem ele era e o que estava fazendo na cama do seu filho – pelo menos ele imaginava que era isto que ela dizia, pois não conseguia entendê-la – e ele, apalpando-se, ao mesmo tempo assustado e maravilhado, eu Franz Kafka!

Levantou-se da cama e foi se olhar no espelho, enquanto sua mãe corria do quarto para chamar seu pai, que chamou a polícia, que veio e cercou o prédio errado, causando uma enorme confusão no trânsito e ferimentos a bala em três pessoas, e viu que era mesmo Franz Kafka, com as olheiras e tudo. Foi preso. Tentou inutilmente se comunicar com os policiais mas nenhum falava checo ou alemão. Tentaram levá-lo para a delegacia no carro da polícia, mas nada se mexia no trânsito engarrafado e um camelô meteu a cabeça para dentro do carro e ofereceu “Saquinho de limão, doutor? Limpador de pára-brisa? Assistência legal?”, que Kafka aceitou, tanto que quando os policiais decidiram bater nele ali mesmo e jogá-lo na calçada foi seu advogado que o levou a um hospital, onde ele esperou uma hora na fila de um guichê só para dizer se era conveniado ou se era pelo SUS.

Em seguida, foram à repartição competente para regularizar sua situação como estrangeiro no país e quando Kafka indicou, com gestos, que não tinha dinheiro para pagar seus serviços, já que a carteira de Gregório Souza estava vazia, o advogado sorriu, levantou a palma da mão e disse “Xacomigo”.

Com a situação de Kafka regularizada por meio de uma propina e um documento de identidade provisório para seu cliente comprado de outro camelô, o advogado daria entrada com um pedido de pensão da Previdência Social, pois o fato de ter-se transformado em checo da noite para o dia o abalara psiquicamente, e os dois ganhariam uma fortuna, ainda mais que o advogado tinha um cúmplice na previdência que acrescentava zeros às guias de pagamento, quanto zeros se quisesse. A todas estas Kafka tomava notas, maravilhado.

Em casa, Kafka conseguiu acalmar os pais de Gregório e, com paciência, recorrendo a algumas palavras em inglês que sabia, explicou o que tinha acontecido. Para sua sorte – e para a sua surpresa, pois antes de morrer dera ordens para que toda sua obra fosse queimada – havia um livro de Kafka numa prateleira do quarto de Gregório, com sua fotografia na capa, e os pais acabaram compreendendo que aquilo tudo era um tipo de acontecimento literário, talvez uma parábola, e que Gregório não corria perigo, salvo o de perder seu emprego na companhia de seguros.

Adotaram o filho substituto. E com sua situação doméstica resolvida, o português que aprendeu ouvindo as novelas e lendo as traduções dos seus próprios livros e o dinheiro que o advogado conseguiu da Previdência – R$ 500 milhões – Kafka se sentiu em condições de recomeçar a carreira literária interrompida com sua morte. Comprou um computador e preparou-se para escrever o seu primeiro livro brasileiro, apenas duvidando que estivesse à altura da tarefa.

sábado, 6 de agosto de 2011

Infinito e Finito

O século XIX prosseguiu uma tradição filosófica que veio desde a Antigüidade e que foi muito alimentada pelo pensamento cristão. Nessa tradição, o mais importante sempre foi a idéia do infinito, isto é, da Natureza eterna (dos gregos), do Deus eterno (dos cristãos), do desenvolvimento pleno e total da História ou do tempo como totalização de todos os seus momentos ou suas etapas. Prevalecia a idéia de todo ou de totalidade, da qual os humanos fazem parte e na qual os humanos participam.

No entanto, a Filosofia do século XX tendeu a dar maior importância ao finito, isto é, ao que surge e desaparece, ao que tem fronteiras e limites. Esse interesse pelo finito aparece, por exemplo, numa corrente filosófica (entre os anos 30 e 50) chamada existencialismo e que definiu o humano ou o homem como “um ser para a morte”, isto é, um ser que sabe que termina e que precisa encontrar em si mesmo o sentido de sua existência.

Para a maioria dos existencialistas, dois eram os modos privilegiados de o homem aceitar e enfrentar sua finitude: através das artes e através da ação político-revolucionária. Nessas formas excepcionais da atividade, os humanos seriam capazes de dar sentido à brevidade e finitude de suas vidas.