domingo, 6 de dezembro de 2009
Se meus olhos
Se meus olhos fossem câmeras cinematográficas eu não veria chuvas nem estrelas nem lua, teria que construir chuvas, inventar luas, arquitetar estrelas. Mas meus olhos são feitos de retinas, não de lentes e neles cabem todas as chuvas estrelas lua que vejo todos os dias todas as noites.
quarta-feira, 2 de dezembro de 2009
Drinque com Azeitona Dentro
Encontrei o demônio esparramado numa poltrona de vime com almofadões. Ele bebericava um martíni com uma azeitona dentro e lia O Escaravelho do diabo. Usava seus óculos de leitura. Não ousei interromper. Eu tampouco gosto que interrompam a minha leitura. Eu acabara de devolver este livro para a biblioteca estudantil. Livrinho mixuruca. Tento avistar a contracapa para me certificar de que não é a cópia que eu tive em mãos, mas suas unhas compridas não permitem que eu saiba. Ele abandona o livro e se espreguiça. Coloca-o no topo da pilha de livros acumulados no criado-mudo. Todos têm um marcador dentro. Ele deve ler vários livros ao mesmo tempo. Pensando bem, faz sentido — sendo ele quem é. De onde estou parada vejo passagens para outros salões. Se eu esticar o braço posso tocar a ponta de uma tremenda estalactite, mas sei que este meu gesto estúpido destruiria um processo de milhares de anos. Isto eu ouvi numa excursão que fizemos ao Parque do Petar, na quarta série. Marcelo Galvão, logo ao entrar, abraçou uma estalactite inteira para ver se seus braços se encontrariam do outro lado. O guia disse que ele acabara de destruir aproximadamente quinhentos mil anos de trabalho. E nem que ele vivesse mais um bilhão de anos ele não poderia consertar as coisas. Mas para quem conhece Marcelo Galvão, sabe que esse estrago é café pequeno perto do estrago que ele causa diariamente em sala de aula. Mas uma coisa é levar uma dura de um guia de excursão de escola, outra é do demônio em pessoa. Enfio as mãos no bolso.
Um garçom vestido de branco me oferece uma bebida verde borbulhante que exala uma fumacinha feito gelo seco. Eu recuso. Ele toma minha mão, a bebida, e encaixa uma na outra. Retira-se por uma das passagens da gruta. Sem os óculos de leitura, o demônio tem um jeito cansado.
— O que eu posso fazer por você? — ele pergunta.
Um homem vestido de terno aproxima-se com uma pasta. Solicita três assinaturas. O demônio alcança o criado-mudo e dentre as quinquilharias ali amontoadas, encontra uma agulha e um potinho de vidro. Enfia a agulha na ponta do dedo e vira os olhos. O potinho rapidamente se enche de um líquido vermelho escuro e pela maneira como cai, percebo que é viscoso como uma cobertura de sorvete. Então ele mergulha uma pena branca no potinho de tinta e assina a papelada. Acho tudo isso carnavalesco demais.
— Por mim, nada não senhor.
Uma gargalhada de programa de televisão é emitida pelo sistema de alto-falantes. O demônio continua:
— Você se engana. Eu posso fazer muito por você.
A professora, Dorotéia, passa de carteira em carteira distribuindo as provas de matemática. Ela caminha vagarosamente para dar vantagem aos primeiros alunos. Eu serei a última a receber a prova porque a minha é a última carteira da última fila. Enquanto Eliane Meirelles está trabalhando na primeira questão, eu nem recebi a minha prova. Mas eu sei que há um custo pela ajuda oferecida. E eu não quero me envolver com ele. Agora ele retira a azeitona do seu drinque e com um peteleco joga-a para cima. Projeta sua língua ágil para fora e pega-a no ar, naquele ponto em que ela subiu tudo que podia subir, dá uma paradinha no meio da trajetória e torna a cair. Meu drinque ainda borbulha e eu não me atrevo a prová-lo enquanto ele não se acalmar. Marcelo Galvão recebeu sua prova. Mais cinco alunos e é a minha vez. Estamos no capítulo da Raiz Quadrada. Eu entendo perfeitamente o conceito de Raiz Quadrada. Não por mérito de Professora Dorotéia, mas de tanto pensar no assunto. Dorotéia nunca explica questões de matemática. Ela dá exemplos. Acredita que se martelar um monte de exemplos nas nossas cabeças, a coisa pode vir a fazer sentido. Vence pelo cansaço. Eu entendo que dentro de cada número mora um número menor. O numerinho está escondido lá dentro e a Raiz Quadrada é uma exigência para que a gente cavouque dentro do número e descubra qual numerinho multiplicado por ele mesmo, dá aquele numero de fachada. Então, quando uma pessoa diz que 3 é a Raiz Quadrada de 9, significa que 3 é a alma do 9. Escondido lá dentro, ele sustenta o 9. Isso tudo eu jamais poderei escrever nessa prova. Primeiro, porque não se deve escrever em provas de matemática. Segundo, porque caso você tenha que escrever, não deve usar a palavra "alma".
Nádia acaba de ler sua prova e vira-se para trás. Ela me encara e não diz nada. Não é permitido falar durante a prova. Mas o principal motivo por que não diz nada, é por não ser necessário. Aquele olhar eu conheço e diz que eu estou perdida, que jamais, em toda minha vida, serei capaz de fazer esta prova. Eu imagino o tipo de Raiz Quadrada que Dorotéia enfiou na prova. Bebo meu drinque borbulhante. O melhor é fazer um acordo antes que Dorotéia me alcance.
No fundo do meu, também há uma azeitona com o miolo vermelho. Atiro-a com mais força que deveria. Ela quase esbarra numa estalactite, o que seria desastroso. Eu poderia engolir dois milhões de anos de trabalho da mãe-natureza. Mas a azeitona é esperta e não encosta. É difícil saber onde ela vai aterrizar. Há uma corrente de vento nesta gruta e isto pode alterar seu percurso. Com a boca escancarada, caminho para a direita e para a esquerda, como um malabarista chinês. Sei que ele me observa e talvez ria de mim, mas eu me concentro no meu ato e consigo me encaixar na posição exata da trajetória. Abro a boca o máximo que posso e recebo a azeitona que bate no fundo da minha garganta e escorrega goela abaixo, sem brecar. Meus olhos se enchem de lágrimas. Estou sufocando. O garçom de branco me acode com uma garrafa de água com gás. Eu me recomponho e retorno ao assunto:
— É apenas uma provinha de matemática. Acho que não é necessário fazer um pacto formal. Eu não vou ganhar dinheiro com isso. Talvez nem seja um bom negócio para você. Além do mais, quem precisa de Raiz Quadrada, nessa vida?
Eu não assinaria papel nenhum. Eu não queimaria no inferno por causa de Dorotéia. Não mesmo!
— Eu! Eu inventei a Raiz Quadrada.
Eu devia ter imaginado. A idéia de enfiar pequenos numerinhos dentro de outros números, numerinhos que se estimulados, crescem e se transformam em algo maior... Claro!
— Por que você fez isso? - pergunto.
Eu sei que o demônio, ao contrário de Deus, prefere conversas francas.
— É divertido.
Recebo minha prova. Mas não vou me atirar a ela desesperadamente. Sei que Eliane Meirelles a essa altura já deve estar na terceira questão, mas não dou esse gostinho a Dorotéia. Ela não deixa a minha carteira. Cruza os braços e aguarda minha reação. Eu espreguiço, procuro um lápis, uma borracha, reforço meu rabo-de-cavalo e agora sim, pronta para começar. Dorotéia desenha um relógio na lousa. Omite o ponteiro das horas e o ponteiro dos minutos ela risca num traço determinado que aponta para os dez minutos. Daqui ao final da prova, de cinco em cinco minutos, ela apagará este traço e o desenhará um pouquinho mais inclinado. É o seu conceito de diversão. Talvez ela tenha feito um pacto.
— Tenho uma pergunta.
— Sou todo ouvidos — responde o demônio.
— A Dorotéia já...
Por algum motivo hesito em dizer "pacto". Ele pode ficar ofendido.
— Nunca consegui coisa alguma com Dorotéia. Eu tentei, mas ela não quis.
Dorotéia quer que extraiamos raízes quadradas de números estrambóticos. São sete questões. Ao final da prova ela exigirá as raízes. No seu ver, não passamos de roedores. Ela quer beterrabas e cenouras. Dorotéia altera o ponteiro dos minutos e volta para a sua mesa. Enquanto extraímos, ela lê uma revista.
— Pensando bem, tem uma coisinha que você poderia fazer por mim. Um favor insignificante.
O homem de terno volta com uma prancheta e caneta. Posiciona-se ao meu lado. Eu continuo:
— Não é tanto ajuda, é de certo modo uma inspiração para completar esta prova, sendo você o criador da coisa.
O homem de terno escreve na prancheta as minhas palavras. Tira uma agulha do bolso do seu terno e pede que eu lhe empreste um dedo. Eu meto minhas mãos no bolso. Concentro-me nos números e começo a fazer as tais contas. Extraio uma raiz aqui e outra ali. A última raiz eu não encontro. Talvez ela não exista. Eu sei que alguns números não possuem nada de bom dentro deles. Dorotéia recolhe as provas. O resultado virá só na semana seguinte, mas eu não tenho pressa. Escapei de mais uma tentação. Ela apaga o relógio da lousa e guarda nossas provas dentro de um envelope de papelão. Fecha-o girando um barbante em torno de um botão de alumínio. Gira o barbante três vezes. Dorotéia pode muito bem ser a enviada dele e a prova foi apenas um pretexto para chegar até mim. lembro-me das palavras de Irmã Cecília: "Somos testados em nossos atos: Desta vez eu me safei, mas foi por pouco. Na cabeça de uma professora de matemática, ética e integridade de espírito, assim como alma, não são conceitos palpáveis. Ela entende apenas de notas e números. Mas eu sei que há mais nesta vida do que um boletim impecável.
Um garçom vestido de branco me oferece uma bebida verde borbulhante que exala uma fumacinha feito gelo seco. Eu recuso. Ele toma minha mão, a bebida, e encaixa uma na outra. Retira-se por uma das passagens da gruta. Sem os óculos de leitura, o demônio tem um jeito cansado.
— O que eu posso fazer por você? — ele pergunta.
Um homem vestido de terno aproxima-se com uma pasta. Solicita três assinaturas. O demônio alcança o criado-mudo e dentre as quinquilharias ali amontoadas, encontra uma agulha e um potinho de vidro. Enfia a agulha na ponta do dedo e vira os olhos. O potinho rapidamente se enche de um líquido vermelho escuro e pela maneira como cai, percebo que é viscoso como uma cobertura de sorvete. Então ele mergulha uma pena branca no potinho de tinta e assina a papelada. Acho tudo isso carnavalesco demais.
— Por mim, nada não senhor.
Uma gargalhada de programa de televisão é emitida pelo sistema de alto-falantes. O demônio continua:
— Você se engana. Eu posso fazer muito por você.
A professora, Dorotéia, passa de carteira em carteira distribuindo as provas de matemática. Ela caminha vagarosamente para dar vantagem aos primeiros alunos. Eu serei a última a receber a prova porque a minha é a última carteira da última fila. Enquanto Eliane Meirelles está trabalhando na primeira questão, eu nem recebi a minha prova. Mas eu sei que há um custo pela ajuda oferecida. E eu não quero me envolver com ele. Agora ele retira a azeitona do seu drinque e com um peteleco joga-a para cima. Projeta sua língua ágil para fora e pega-a no ar, naquele ponto em que ela subiu tudo que podia subir, dá uma paradinha no meio da trajetória e torna a cair. Meu drinque ainda borbulha e eu não me atrevo a prová-lo enquanto ele não se acalmar. Marcelo Galvão recebeu sua prova. Mais cinco alunos e é a minha vez. Estamos no capítulo da Raiz Quadrada. Eu entendo perfeitamente o conceito de Raiz Quadrada. Não por mérito de Professora Dorotéia, mas de tanto pensar no assunto. Dorotéia nunca explica questões de matemática. Ela dá exemplos. Acredita que se martelar um monte de exemplos nas nossas cabeças, a coisa pode vir a fazer sentido. Vence pelo cansaço. Eu entendo que dentro de cada número mora um número menor. O numerinho está escondido lá dentro e a Raiz Quadrada é uma exigência para que a gente cavouque dentro do número e descubra qual numerinho multiplicado por ele mesmo, dá aquele numero de fachada. Então, quando uma pessoa diz que 3 é a Raiz Quadrada de 9, significa que 3 é a alma do 9. Escondido lá dentro, ele sustenta o 9. Isso tudo eu jamais poderei escrever nessa prova. Primeiro, porque não se deve escrever em provas de matemática. Segundo, porque caso você tenha que escrever, não deve usar a palavra "alma".
Nádia acaba de ler sua prova e vira-se para trás. Ela me encara e não diz nada. Não é permitido falar durante a prova. Mas o principal motivo por que não diz nada, é por não ser necessário. Aquele olhar eu conheço e diz que eu estou perdida, que jamais, em toda minha vida, serei capaz de fazer esta prova. Eu imagino o tipo de Raiz Quadrada que Dorotéia enfiou na prova. Bebo meu drinque borbulhante. O melhor é fazer um acordo antes que Dorotéia me alcance.
No fundo do meu, também há uma azeitona com o miolo vermelho. Atiro-a com mais força que deveria. Ela quase esbarra numa estalactite, o que seria desastroso. Eu poderia engolir dois milhões de anos de trabalho da mãe-natureza. Mas a azeitona é esperta e não encosta. É difícil saber onde ela vai aterrizar. Há uma corrente de vento nesta gruta e isto pode alterar seu percurso. Com a boca escancarada, caminho para a direita e para a esquerda, como um malabarista chinês. Sei que ele me observa e talvez ria de mim, mas eu me concentro no meu ato e consigo me encaixar na posição exata da trajetória. Abro a boca o máximo que posso e recebo a azeitona que bate no fundo da minha garganta e escorrega goela abaixo, sem brecar. Meus olhos se enchem de lágrimas. Estou sufocando. O garçom de branco me acode com uma garrafa de água com gás. Eu me recomponho e retorno ao assunto:
— É apenas uma provinha de matemática. Acho que não é necessário fazer um pacto formal. Eu não vou ganhar dinheiro com isso. Talvez nem seja um bom negócio para você. Além do mais, quem precisa de Raiz Quadrada, nessa vida?
Eu não assinaria papel nenhum. Eu não queimaria no inferno por causa de Dorotéia. Não mesmo!
— Eu! Eu inventei a Raiz Quadrada.
Eu devia ter imaginado. A idéia de enfiar pequenos numerinhos dentro de outros números, numerinhos que se estimulados, crescem e se transformam em algo maior... Claro!
— Por que você fez isso? - pergunto.
Eu sei que o demônio, ao contrário de Deus, prefere conversas francas.
— É divertido.
Recebo minha prova. Mas não vou me atirar a ela desesperadamente. Sei que Eliane Meirelles a essa altura já deve estar na terceira questão, mas não dou esse gostinho a Dorotéia. Ela não deixa a minha carteira. Cruza os braços e aguarda minha reação. Eu espreguiço, procuro um lápis, uma borracha, reforço meu rabo-de-cavalo e agora sim, pronta para começar. Dorotéia desenha um relógio na lousa. Omite o ponteiro das horas e o ponteiro dos minutos ela risca num traço determinado que aponta para os dez minutos. Daqui ao final da prova, de cinco em cinco minutos, ela apagará este traço e o desenhará um pouquinho mais inclinado. É o seu conceito de diversão. Talvez ela tenha feito um pacto.
— Tenho uma pergunta.
— Sou todo ouvidos — responde o demônio.
— A Dorotéia já...
Por algum motivo hesito em dizer "pacto". Ele pode ficar ofendido.
— Nunca consegui coisa alguma com Dorotéia. Eu tentei, mas ela não quis.
Dorotéia quer que extraiamos raízes quadradas de números estrambóticos. São sete questões. Ao final da prova ela exigirá as raízes. No seu ver, não passamos de roedores. Ela quer beterrabas e cenouras. Dorotéia altera o ponteiro dos minutos e volta para a sua mesa. Enquanto extraímos, ela lê uma revista.
— Pensando bem, tem uma coisinha que você poderia fazer por mim. Um favor insignificante.
O homem de terno volta com uma prancheta e caneta. Posiciona-se ao meu lado. Eu continuo:
— Não é tanto ajuda, é de certo modo uma inspiração para completar esta prova, sendo você o criador da coisa.
O homem de terno escreve na prancheta as minhas palavras. Tira uma agulha do bolso do seu terno e pede que eu lhe empreste um dedo. Eu meto minhas mãos no bolso. Concentro-me nos números e começo a fazer as tais contas. Extraio uma raiz aqui e outra ali. A última raiz eu não encontro. Talvez ela não exista. Eu sei que alguns números não possuem nada de bom dentro deles. Dorotéia recolhe as provas. O resultado virá só na semana seguinte, mas eu não tenho pressa. Escapei de mais uma tentação. Ela apaga o relógio da lousa e guarda nossas provas dentro de um envelope de papelão. Fecha-o girando um barbante em torno de um botão de alumínio. Gira o barbante três vezes. Dorotéia pode muito bem ser a enviada dele e a prova foi apenas um pretexto para chegar até mim. lembro-me das palavras de Irmã Cecília: "Somos testados em nossos atos: Desta vez eu me safei, mas foi por pouco. Na cabeça de uma professora de matemática, ética e integridade de espírito, assim como alma, não são conceitos palpáveis. Ela entende apenas de notas e números. Mas eu sei que há mais nesta vida do que um boletim impecável.
terça-feira, 1 de dezembro de 2009
Picasso e a Fotografia
Quando vemos o que pode ser expresso pela foto, nos damos conta de que tudo aquilo não pode mais ser preocupação da pintura… Por que o artista insistiria em realizar aquilo que, com a ajuda da objetiva, pode ser tão bem feito?
Seria uma loucura, não? A fotografia chegou na hora certa para liberar a pintura de qualquer literatura, anedota e arte do tema. Em todo caso, um certo aspecto do tema pertence, daqui por diante, ao campo da fotografia…
Não deveriam os pintores aproveitar sua liberdade reconquistada para fazer outra coisa? Seria muito curioso fixar fotograficamente, não as etapas de um quadro, mas suas metamorfoses. Talvez percebêssemos por quais caminhos o cérebro envereda para a concretização de seus sonhos. Entretanto, é realmente muito curioso observar que, no fundo, o quadro não muda, que a visão inicial permanece quase intacta, apesar das aparências. Muitas vezes vejo uma luz e uma sombra que pus no meu quadro e empenho-me em quebrá-las, acrescentando uma cor que crie um efeito contrário. Quando essa obra é fotografada, percebo que aquilo que havia introduzido para corrigir minha primeira visão desaparece, e que, definitivamente, a imagem dada pela fotografia corresponde a minha primeira visão, antes das transformações trazidas contra minha vontade.
Seria uma loucura, não? A fotografia chegou na hora certa para liberar a pintura de qualquer literatura, anedota e arte do tema. Em todo caso, um certo aspecto do tema pertence, daqui por diante, ao campo da fotografia…
Não deveriam os pintores aproveitar sua liberdade reconquistada para fazer outra coisa? Seria muito curioso fixar fotograficamente, não as etapas de um quadro, mas suas metamorfoses. Talvez percebêssemos por quais caminhos o cérebro envereda para a concretização de seus sonhos. Entretanto, é realmente muito curioso observar que, no fundo, o quadro não muda, que a visão inicial permanece quase intacta, apesar das aparências. Muitas vezes vejo uma luz e uma sombra que pus no meu quadro e empenho-me em quebrá-las, acrescentando uma cor que crie um efeito contrário. Quando essa obra é fotografada, percebo que aquilo que havia introduzido para corrigir minha primeira visão desaparece, e que, definitivamente, a imagem dada pela fotografia corresponde a minha primeira visão, antes das transformações trazidas contra minha vontade.
Pertencer
Um amigo meu, médico, assegurou-me que desde o berço a criança sente o ambiente, a criança quer: nela o ser humano, no berço mesmo, já começou.
Tenho certeza de que no berço a minha primeira vontade foi a de pertencer. Por motivos que aqui não importam, eu de algum modo devia estar sentindo que não pertencia a nada e a ninguém. Nasci de graça.
Se no berço experimentei esta fome humana, ela continua a me acompanhar pela vida afora, como se fosse um destino. A ponto de meu coração se contrair de inveja e desejo quando vejo uma freira: ela pertence a Deus.
Exatamente porque é tão forte em mim a fome de me dar a algo ou a alguém, é que me tornei bastante arisca: tenho medo de revelar de quanto preciso e de como sou pobre. Sou, sim. Muito pobre. Só tenho um corpo e uma alma. E preciso de mais do que isso.
Com o tempo, sobretudo os últimos anos, perdi o jeito de ser gente. Não sei mais como se é. E uma espécie toda nova de "solidão de não pertencer" começou a me invadir como heras num muro.
Se meu desejo mais antigo é o de pertencer, por que então nunca fiz parte de clubes ou de associações? Porque não é isso que eu chamo de pertencer. O que eu queria, e não posso, é por exemplo que tudo o que me viesse de bom de dentro de mim eu pudesse dar àquilo que eu pertenço. Mesmo minhas alegrias, como são solitárias às vezes. E uma alegria solitária pode se tornar patética. É como ficar com um presente todo embrulhado em papel enfeitado de presente nas mãos - e não ter a quem dizer: tome, é seu, abra-o! Não querendo me ver em situações patéticas e, por uma espécie de contenção, evitando o tom de tragédia, raramente embrulho com papel de presente os meus sentimentos.
Pertencer não vem apenas de ser fraca e precisar unir-se a algo ou a alguém mais forte. Muitas vezes a vontade intensa de pertencer vem em mim de minha própria força - eu quero pertencer para que minha força não seja inútil e fortifique uma pessoa ou uma coisa.
Quase consigo me visualizar no berço, quase consigo reproduzir em mim a vaga e no entanto premente sensação de precisar pertencer. Por motivos que nem minha mãe nem meu pai podiam controlar, eu nasci e fiquei apenas: nascida.
No entanto fui preparada para ser dada à luz de um modo tão bonito. Minha mãe já estava doente, e, por uma superstição bastante espalhada, acreditava-se que ter um filho curava uma mulher de uma doença. Então fui deliberadamente criada: com amor e esperança. Só que não curei minha mãe. E sinto até hoje essa carga de culpa: fizeram-me para uma missão determinada e eu falhei. Como se contassem comigo nas trincheiras de uma guerra e eu tivesse desertado. Sei que meus pais me perdoaram por eu ter nascido em vão e tê-los traído na grande esperança.
Mas eu, eu não me perdôo. Quereria que simplesmente se tivesse feito um milagre: eu nascer e curar minha mãe. Então, sim: eu teria pertencido a meu pai e a minha mãe. Eu nem podia confiar a alguém essa espécie de solidão de não pertencer porque, como desertor, eu tinha o segredo da fuga que por vergonha não podia ser conhecido.
A vida me fez de vez em quando pertencer, como se fosse para me dar a medida do que eu perco não pertencendo. E então eu soube: pertencer é viver. Experimentei-o com a sede de quem está no deserto e bebe sôfrego os últimos goles de água de um cantil. E depois a sede volta e é no deserto mesmo que caminho!
Tenho certeza de que no berço a minha primeira vontade foi a de pertencer. Por motivos que aqui não importam, eu de algum modo devia estar sentindo que não pertencia a nada e a ninguém. Nasci de graça.
Se no berço experimentei esta fome humana, ela continua a me acompanhar pela vida afora, como se fosse um destino. A ponto de meu coração se contrair de inveja e desejo quando vejo uma freira: ela pertence a Deus.
Exatamente porque é tão forte em mim a fome de me dar a algo ou a alguém, é que me tornei bastante arisca: tenho medo de revelar de quanto preciso e de como sou pobre. Sou, sim. Muito pobre. Só tenho um corpo e uma alma. E preciso de mais do que isso.
Com o tempo, sobretudo os últimos anos, perdi o jeito de ser gente. Não sei mais como se é. E uma espécie toda nova de "solidão de não pertencer" começou a me invadir como heras num muro.
Se meu desejo mais antigo é o de pertencer, por que então nunca fiz parte de clubes ou de associações? Porque não é isso que eu chamo de pertencer. O que eu queria, e não posso, é por exemplo que tudo o que me viesse de bom de dentro de mim eu pudesse dar àquilo que eu pertenço. Mesmo minhas alegrias, como são solitárias às vezes. E uma alegria solitária pode se tornar patética. É como ficar com um presente todo embrulhado em papel enfeitado de presente nas mãos - e não ter a quem dizer: tome, é seu, abra-o! Não querendo me ver em situações patéticas e, por uma espécie de contenção, evitando o tom de tragédia, raramente embrulho com papel de presente os meus sentimentos.
Pertencer não vem apenas de ser fraca e precisar unir-se a algo ou a alguém mais forte. Muitas vezes a vontade intensa de pertencer vem em mim de minha própria força - eu quero pertencer para que minha força não seja inútil e fortifique uma pessoa ou uma coisa.
Quase consigo me visualizar no berço, quase consigo reproduzir em mim a vaga e no entanto premente sensação de precisar pertencer. Por motivos que nem minha mãe nem meu pai podiam controlar, eu nasci e fiquei apenas: nascida.
No entanto fui preparada para ser dada à luz de um modo tão bonito. Minha mãe já estava doente, e, por uma superstição bastante espalhada, acreditava-se que ter um filho curava uma mulher de uma doença. Então fui deliberadamente criada: com amor e esperança. Só que não curei minha mãe. E sinto até hoje essa carga de culpa: fizeram-me para uma missão determinada e eu falhei. Como se contassem comigo nas trincheiras de uma guerra e eu tivesse desertado. Sei que meus pais me perdoaram por eu ter nascido em vão e tê-los traído na grande esperança.
Mas eu, eu não me perdôo. Quereria que simplesmente se tivesse feito um milagre: eu nascer e curar minha mãe. Então, sim: eu teria pertencido a meu pai e a minha mãe. Eu nem podia confiar a alguém essa espécie de solidão de não pertencer porque, como desertor, eu tinha o segredo da fuga que por vergonha não podia ser conhecido.
A vida me fez de vez em quando pertencer, como se fosse para me dar a medida do que eu perco não pertencendo. E então eu soube: pertencer é viver. Experimentei-o com a sede de quem está no deserto e bebe sôfrego os últimos goles de água de um cantil. E depois a sede volta e é no deserto mesmo que caminho!
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